Ou como dizia Milton Nascimento na música 'Coração Civil', vamos defender a nossa utopia e esperar que os nossos sonhos teimosos um dia se realizem.
Ainda que não possamos adivinhar o futuro, sim, temos ao menos o direito de imaginar como queremos que seja. Em 1948 e em 1976, as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos; mas a imensa maioria da humanidade não tem mais do que o direito de ver, ouvir e calar.
Deixo aqui um trecho de uma entrevista feita em 23 de Maio 2011 por Jaume Barberà (programa "Singulares") a Eduardo Hughes Galeano, jornalista e escritor uruguaio sobre o direito ao delírio.
Sim, sim vou ler umas palavrinhas que têm a ver com o direito de sonhar, com o direito ao delírio, a partir de algo que me aconteceu em Cartagena de Índias há algum tempo, quando estava numa Universidade lhes dando uma palestra, junto com um grande amigo, um director de cinema argentino, Fernando Birri.
Então os jovens estudantes faziam perguntas, às vezes a mim, outras vezes a ele, e a ele calhou a pergunta mais difícil de todas. Um estudante levantou-se e perguntou:
Para que serve a utopia?
Eu olhei para ele com pena, pensei que estava encrencado e ele respondeu magnificamente, da melhor maneira. Ele disse: - A topia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei, que se eu caminho dez passos, ela se afastará dez passos. Quanto mais a procurar menos a encontrarei porque ela vai-se distanciando à medida que eu me aproximo. Pois a utopia serve para isso: para caminhar.
- Que tal se começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal se delirarmos, um pouquinho?
- Que tal se fixarmos os nossos olhos mais além da infâmia, para imaginar outro mundo possível?
“- O ar das ruas estará limpo de todo o veneno que não venha dos medos e das paixões humanas;
- Nas ruas os carros sendo esmagados pelos cães;
- As pessoas não serão dirigidas pelos carros, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas por supermercados, nem serão assistidas pela TV;
- A TV deixará de ser o membro mais importante da família e será tratada como um ferro de passar ou máquina de lavar roupa;
- Será incorporado aos códigos penais o delito de estupidez que cometem os que vivem para ter ou para ganhar em vez de viver para viver simplesmente, assim como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca;
- Em nenhum país irá prender os rapazes que se recusarem a cumprir o serviço militar, mas aqueles que quiserem podem servi-lo;
- Ninguém viverá para trabalhar, mas todos trabalharemos para viver;
- Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo e nem chamarão de qualidade de vida à quantidade de coisas;
- Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram ser fervidas vivas;
- Os historiadores não acreditarão que os países gostam de ser invadidos;
- Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas;
- A solenidade deixará de ser uma virtude;
- E ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo;
- A morte e o dinheiro perderão seus poderes mágicos, e nem por falecimento e nem por fortuna um canalha se tornará um virtuoso cavalheiro;
- A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio porque a comida e a comunicação são direitos humanos;
- Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de ingestão;
- As crianças de rua não serão mais tratadas como lixo, porque não haverá mais crianças de rua;
- As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá mais crianças ricas;
- A educação não será privilégio daqueles que podem pagá-la;
- A polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la;
- A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas, serão novamente juntas de volta, bem grudadinhas, costas com costas;
- Na Argentina, as “Loucas de la Plaza de Mayo” serão um exemplo de saúde mental porque elas se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória;
- A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das tábuas de Moisés, e o sexto mandamento mandará festejar o corpo;
- A igreja também ditará outro mandamento que Deus havia esquecido: “amarás a natureza da qual fazes parte”;
- Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma- Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles se desesperaram de tanto esperar e se perderam de tanto procurar;
- Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem se importarem nem um pouquinho com as fronteiras do mapa e ou do tempo
- Seremos imperfeitos porque a perfeição continuará sendo um aborrecido privilégio dos Deuses;
- Mas neste mundo, neste mundo trapalhão e fodido, seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última.”
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