sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Democracia em Africa - Angola, por João Melo

O autoritarismo e o défice de cultura democrática não é uma questão deste ou daquele partido. Por isso, entre a classe política nacional, praticamente todos têm uma origem ideológica autoritária.

O papel definidor e estruturante da crítica na edificação da democracia é óbvio. No entanto, em Angola, é preciso reafirmá-lo sistematicamente, até “naturalizá-lo”, pois ainda estamos numa fase de transição para a democracia.
Como tenho afirmado várias vezes em público, o autoritarismo é um traço horizontal da sociedade angolana (a rigor, começa em casa). O autoritarismo angolano tem uma tripla origem: a cultura tradicional, de base rural e onde o indíviduo se deve submeter à comunidade; o colonial-fascismo português; e o modelo marxista-leninista adoptado nos primeiros 16 anos de independência. Daí resulta uma “salada autoritária” que é necessário desconstruir com realismo, inteligência e persistência.
Quer dizer, o autoritarismo e o défice de cultura democrática não é uma questão deste ou daquele partido. Por isso, entre a classe política nacional, praticamente todos têm uma origem ideológica (no mínimo, ou seja, para não falar da praxis) autoritária, quer de direita quer de esquerda. Pela parte que me cabe, não desminto nem escamoteio a minha matriz.
Assim sendo, o discurso da UNITA, por exemplo, segundo o qual a democracia angolana se deve à guerra que ela fez desde a independência é irredutivelmente contrariado pelo facto de, em 1992, não ter aceite a sua derrota nas urnas e optado por retomar o conflito armado. Essa decisão demonstrou que a UNITA não lutava pela democracia, mas simplesmente pelo poder.
A retória democrática de muitos partidos da “oposição civil”, como eram designados até 2002, também não é suficiente para ocultar o ranço autoritário que espreita por detrás da mesma. O negativismo sistemático, o vanguardismo e a arrogância política e intelectual aí estão para demonstrá-lo.
Até entre os líderes da chamada sociedade civil é possível identificar manifestações dessa falta de cultura democrática. Para dar apenas um exemplo, cito a declaração de uma activista social, perturbada com o recente resultado eleitoral, que afirmou que, agora, a sociedade civil deveria assumir o papel da oposição (sic), como se os mais de cinco milhões de angolanos que votaram no MPLA pertencessem a qualquer sociedade “extra-terrestre”.
Dito isto, a conclusão só pode ser uma: a construção de uma sociedade genuinamente democrática em Angola implica, antes de mais nada, que todos os actores políticos e sociais tenham a humildade de reconhecer a sua origem político-ideológica. Isso parece-me fundamental para que o discurso democrático, hoje tornado uma unanimidade política nacional, possa ser convertido em prática diária, a todos os níveis.
Atendo-me exclusivamente à democracia política, é impossível resistir a outra obviedade: esta última precisa, desde logo, de partidos democráticos. Como partido maioritário, o MPLA tem, nesse sentido, responsabilidades acrescidas.
Os seus estatutos, aprovados em 2005, garantem-no plenamente, não só interna, como também externamente. Com efeito, os mesmos começam por assegurar expressamente a “liberdade de discussão, tolerância e reconhecimento e aceitação do pluralismo de opiniões no seio do partido”. Além disso, admitem e reconhecem a existência de correntes de opinião, assim como o direito destas últimas à sua eventual “manifestação pública ou interna”. Por maioria de razão, o mesmo acontece com as vozes rigorosamente pessoais (mas talvez não individuais).
Há muito que eu defendo que certas opiniões não devem ser pronunciadas apenas nos chamados “canais próprios”. É certo que a crítica pública às instituições (e as sugestões também, é claro), quando feita por membros dessas mesmas instituições, tem sempre os seus condicionalismos e limites, desde logo estatutários. Assim mesmo, contudo, pode ser de grande importância e utilidade para certas mudanças e correcções de rumo. A experiência mostra que as organizações mudam mais fácil e rapidamente sob pressão externa do que interna.
Um interessante tema de pesquisa para a sociologia política poderia ser verificar que outro partido angolano, além do MPLA, admite estatutariamente a manifestação pública de opiniões diferentes e críticas. A verdade é que não tenho apreciado isso em nenhum outro. Esse compromisso com o aprofundamento da democracia, quer interna quer externa, foi – que ninguém duvide – um dos factores que contribuíu para o tamanho da recente vitória eleitoral do MPLA.

*João Melo, jornalista e escritor angolano, é diretor da Revista África21 e assina coluna no Jornal de Angola

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