sexta-feira, 21 de março de 2008

Elogio ao amor

Gostei de ler esta crónica do Miguel Esteves Cardoso (in Expresso). Nos meus tempos de menina acho que o amor era uma coisa grande, misteriosa etc. Falavamos menos de sexo. Hoja há menos tabus, fala-se muito de sexo e pouco de amor. Talvez o amor tenha perdido alguma beleza. Lembro-me que gostava muito dum poema (Quase nada) do Eugénio de Andrade que dizia 'O amor é uma ave a termer nas mãos de uma criança. Serve-se de palavras por acreditar que as manhãs mais limpas não têm voz'.

Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas. Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem,tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.

6 comentários:

JOSÉ disse...

A banalização do amor é uma triste realidade dos nossos dias, penso que é o reflexo de uma sociedade materialista onde os valores e os sentimentos já não têm a força que tinham antigamente.
Gostei muito do artigo e da introdução mas algumas dúvidas persistem. O que é o amor? É para toda a vida? E a paixão? Eu não sei se é possivel explicar, entender ou definir estes sentimentos, talvez as palavras até possam complicar.

Ivone disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ivone disse...

Zé, obrigada pelo teu comentário.
Estou de acordo contigo. Talvez as palavras em vez de simplificarem só compliquem. O amor é, antes de mais, algo que se sente. Como dizia o poeta 'Amor é o fogo que se arde sem se ver'.
O amor dura enquanto dura. A paixão morre. Eu queria ser uma eterna apaixonada, mas isso é coisa que é impossível. Houve um livro que ajudou-me a perceber melhor esta questão, chama-se 'Enamoramento e amor' de Francesco Alberoni.
Mas a banalização e a levianidade de como se aborda a relação entre amor e sexo preocupa-me. Eu diria que se sexualizou o amor. As cantigas de amor deram lugar a Nakadjulahi Doggstyle - quero à moda de cão, a Dama do Bling, outras em que se diz motherfucker, etc.
Dizem que Amsterdão é a capital do sexo, porque têm as montras, as sexshops, o museu do sexo, casas para troca de casais e a bolsa Kamasutra. Talvez por viver perto da pólvora as minhas preocupações sejam redobradas quando vejo este tipo de cultura a expandir-se.
Já no tempo dos nossos pais havia bordéis, orgias, clubes etc. Há antigas estampas japonesas e ilustrações do kamasutra que não são propriamente puras. Isto não é uma coisa totalmente nova, mas sabiam separar o público do privado. Havia consciência dos perigos de expôr tudo a céu aberto.
Algumas coisa até melhoraram. Acho que há menos tabus e que os jovens têm mais facilidade em assumir a sexualidade (hoje é uma coisa natural!).
Mas materializou-se tudo até as relações interpessoais. Estabelece um fim, não interessam os meios. Será que tudo tem de ser rápido e para se consumir? A diferença tem também tem a ver com a massificação e isto parece-me perigoso.
Os corpos não são para se consumirem indistintamente!
Já leste o outro artigo 'Pornografia versus erotismo'?

Anônimo disse...

Amei muito o “Elogio ao amor”, embora me tenha deixado um bocado confusa. Será que existe mesmo o amor eterno? E o que é a paixão? Eu acredito no amor eterno, é algo que não tem definição, algo que se sente com o coração e a alma, algo que não termina, mas que pode sofrer oscilações, devido a certas circunstâncias da vida, embora o sentimento e o desejo de estar com a mesma pessoa continue sempre presente. Muitas vezes podemos amar a pessoa errada, que não nos merece ou corresponde, mas não sabemos explicar porquê, só sabemos que sentimos amor por essa pessoa. Em alguns casos, o amor pode começar com uma simples amizade, como também com uma paixão explosiva, uma química, uma atracção, e daí desenvolver-se e transformar-se. Acredito que se fôr amor verdadeiro, irá durar para toda a vida. Nesse caso, não podemos ver a nossa vida junto de outra pessoa, mesmo que ela seja possuidora de uma beleza fora de vulgar, ou que tenha uma posição financeira invejável, ou que seja dona de uma personalidade formidável, para nós o que conta é a pessoa que elegemos para ser dona do nosso coração. A minha Mãe ficou viúva aos 55 anos, mas nunca mais se quis casar, embora fosse bonita e tivesse pretendentes. Sempre me disse que nunca iria arranjar um homem como o meu Pai, e que tinha muito boas recordações dele. Eu ainda acredito no verdadeiro amor, como vem descrito na Bíblia, no primeiro livro de Corintios, Capítulo 13, versículos 4 a 8. A parte mais linda é “O amor jamais acaba;” !!!
Glória

Ivone disse...

Glória, sei da história de amor entre os teus pais. Sei que os teus pais nunca dormiam sem falar de alguma coisa que tivesse ficado atravessada. Foste tu que me contaste. Para a tua mãe, ele foi o homem da vida dela, o amor eterno. Não é um caso único, há mais, mas é raro. Muitas pessoas separam-se. Havia uma música que dizia: O amor dura se durar enquanto dura.

Ivone disse...

Uma passagem do livro 'Enamoramento e amor': "O enamoramento quando tudo corre bem termina no amor, o movimento, quando resulta, produz uma instituição. Contudo, a relação que há entre enamoramento e amor, entre estado nascente e instituição, é do tipo da que existe entre levantar voo, voar e ter chegado, entre estar no céu sobre as nuvens e ter pousado de novo estavelmente os pés na terra."

Descrição bonita, não concordam?