segunda-feira, 24 de março de 2008

Pornografia versus erotismo

No mês passado passou na televisão holandesa o filme ‘Deep Throat’ (Garganta profunda). Apesar do apelo moral feito do político André Rouvoet para não passarem o filme, este passou em nome da liberdade de expressão. Em nome da liberdade de expressão pode-se ir muito longe (ofender fiéis de outras religiões, etc) excepto ofender a raínha.

Este filme estreou-se em Nova Yorque em 1972 e é talvez o filme pornográfico de maior sucesso de todos os tempos. O filme foi filmado em Miami Beach com um custo irrisório de 24 mil dólares financiados pela família mafiosa Peraino. Só nos EUA este filme arrecadou uma verba de 20 milhões de dólares, e no mundo inteiro esse valor chega aos 600 milhões. A actriz principal Linda Lovelace (1949-2002) recebeu uma quantia irrisória pelo papel que desempenhou neste filme e tornou-se mais tarde activista contra a indústria pornográfica.

Mas afinal, o que é pornografia? Qual a diferença entre pornografia e erotismo?

A palavra pornografia provém do grego 'porno' (prostituta) e 'grapho' (representação), portanto, etimologicamente, significa 'representação da prostituta'.
A palavra erotismo provém do latim 'eroticus' e este do grego 'erotikós', que se referia ao amor sensual e à poesia do amor.

Desde o começo do cristianismo as imagens sexuais foram criminalizadas.
Jacques-Marie Pohier, no livro Le Chrétien, le Plaisir et la sexualité (1974 ed. du Cerf.) em síntese lapidar, escreve: “A Igreja católica só admite o prazer sexual num caso particular: o dos esposos legítima e indissoluvelmente unidos, num coito pénis-vagina do qual se não devem eliminar as possibilidades de fecundação. Por um lado, proíbem-se todas as outras actividades susceptíveis de levar ao prazer sexual, e não existe nenhuma outra religião, cultura ou moral, que tenha limitado tão estritamente as condições da legitimidade do prazer sexual. Por outro, neste único caso em que é permitido, ele é precisamente apenas ‘permitido'. Durante mais de quinze séculos, o cristianismo pensou que, mesmo no caso em que era permitido, este prazer não estava livre de todo o pecado, e que, de todos os modos, não podia ser justificado senão por outra coisa: se um objectivo de outra ordem (por exemplo, um dos três ‘bens' do casamento) não viesse legitimar o seu exercício, não poderia ser prosseguido como um fim, mesmo se as condições requeridas para a sua legitimidade fossem respeitadas”.

A pornografia segundo a moral vitoriana (época de preconceitos, excessiva repressão moral e hipocrisia) provocava o desejo e por isso era condenável. Segundo a mesma moral, o sexo também só servia para procriar.

Em Abril de 1982, no parlamento português num debate sobre a lei do aborto o deputado João Morgado defendia a mesma teoria dizendo “O acto sexual é para ter filhos”. A deputada do PSD Natália Correia (1923-1993) deu resposta em forma de poema recitando:

Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração!
-uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção
ficou capado o Morgado."

Em 1964 um juiz associado à Suprema Corte dos Estados Unidos Potter Stewart (1915-1985) disse: - Eu não posso definir o que é pornografia, mas quando vejo reconheço imediatamente.

A mim também me parece difícil definir a pornografia. Incomoda-me a indústria pornográfica que utiliza a mulher, as crianças, os homens e até os animais como objectos.
Por outro lado, incomoda-me também que os jovens apesar de mais informados, tenham uma educação sexual em que, na maior parte das vezes, esteja ausente a componente moral e ética. Fala-se muito mais de sexo do que de amor. O sexo não pode ser só uma técnica como se fosse ginástica. O sexo ligado ao amor tem mais significado.
Parece-me também que nesta época da globalização todos os valores sejam vendidos. Vejam também o blogue do sociologo Carlos Serra (Moçambique) sobre o Zicoísmo. Vejam aqui.
Será que apreendemos todos pelo mesmo livro?

6 comentários:

Carlos Serra disse...

Está bem, já li, Ivone. Consido excelente o enquadramento que fez. Aqui, em Moçambioque, somos, como sabe, um país demasiado jovem ainda para analisarmos com alguma frieza o fenómeno ou os fenómenos que têm o sexo como matriz. Os textos de Foucault continuam, hoje ainda, a ser modelares no que concerne à perigosidade do sexo. Se puder, procure o que, faz algum tempo já, escrevi sobre a perigoridade sexual no tocante à nossa "Dama do Blig", mas, tb, em relação a medidas tomadas nas escolas (v.g, escolas do Xai-Xai). Abraço índico.

Carlos Serra disse...

Quis dizer "considero", perdoe-me o erro.

Ivone disse...

Obrigado pelo seu comentário. Li hoje num jornal diário (nc.next)que tinham condenado um individuo por ter em posse um filme pornográfico com uma criança virtual (um boneco animado)no papel principal. Surpreendeu-me a notícia num país onde tudo é admitido em nome da liberdade de expressão. Será que estamos a caminho de um retorno (O mito do eterno retorno - Milan Kundera)?

Anônimo disse...

Sobre a ‘pornografia versus erostimo’ há muito que se possa dizer! Como definir pornografia ou erotismo? Acho que as opiniões diferem muito. Há quem diga que ‘o que é nosso é erótico, o que é dos outros é pornográfico’. Onde ‘draw the line’? Numa sociedade normal com valores morais e ética, não iriamos ter este conflito. No entanto, vivemos numa sociedade em que é tudo pela liberdade, pelo prazer, pelos direitos humanos... Onde acaba a nossa liberdade? Será que acaba onde começa a liberdade de outrém? Certas práticas sexuais são mesmo abominantes, e concordo contigo quando falas na utilização de crianças e animais, seres inocentes que deveriam de ser protegidos pela mesma sociedade que apregoa os direitos das crianças e animais, depois ‘turns a blind eye’ a estas situações. Isto é um paradoxo e o cúmulo da incoerência.
Glória

Ivone disse...

Glória, considero excelente o teu comentário. Tens uma maneira rica de veres e analisares as coisas.

Ivone disse...

Estava à procura do ISDN para mandar ao Zé e li este artigo:

http://jn.sapo.pt/2006/11/15/cultura/alberoni_que_nao_mudou_o_enamorament.html

Francesco Alberoni tem um novo livro editado em Portugal. Chamou-lhe "Sexo e Amor". A obra, que surge quase 30 anos após a publicação de "Enamoramento e amor" ,foi escrita como "uma consequência natural" dos estudos que sobre a matéria dos relacionamentos humanos Alberoni tem vindo a produzir.

"Sexo e Amor" marca um novo ponto de viragem , dando, pela primeira vez, uma ordem e um sentido à trama de aspectos divergentes e convergentes que relacionam o amor e o sexo.

"Pensei que valeria a pena estudar as várias sociedades, as várias combinações entre sexo e sociedade. Fiz vários retratos, a partir de centenas de entrevistas, e com eles tentei transmitir aquilo que os homens e as mulheres de hoje sentem, desejam, querem, repudiam".

Para Francesco Alberoni, "é muito difícil, senão impossível", que uma relação baseada só em sexo possa durar. "Na sociedade actual, em que o acesso à Internet está cada vez mais facilitado, o sexo ficou, por isso mesmo, mais vulgarizado", conclui. Alberoni também adianta que "é muito frequente que sejam as raparigas a terem mais cedo relações sexuais do que os rapazes. E isto acaba por lhes trazer grandes desilusões, porque afinal a um desejo muito intenso não corresponde uma grande satisfação sexual. O amor está em permanente conflito com o sexo. Ao contrário do que acontecia há um século, nos dias de hoje há cada vez mais uma tendência para chegar ao amor através do sexo. A pornografia, que a Internet tornou mais acessível aos mais jovens, favorece muito a sexualidade promíscua e a bissexualidade. Tudo isto funciona como um obstáculo ao que chamo o enamoramento. Porque este passa necessariamente por diversas fases. Passa pelo fascínio, pela interpretação, pelas provas de reciprocidade. Por isso é que cada vez mais difícil formar-se um casal. Transformar o enamoramento em amor é muito complicado. Há formas de paixão que têm todas as características de enamoramento mas que, no fim de contas, têm também mecanismos de autodestruição".

Para Francesco Alberoni, "o amor hoje em dia só acontece se houver uma extraordinária intimidade física e espiritual. Quem ama e não é amado sofre muito". O autor de "Sexo e Amor" defende também a ideia de que há de facto diferenças entre a sexualidade feminina e masculina. "Este é, aliás, o único domínio em que há diferenças. As mulheres são mais sensíveis aos odores, ao tacto. Uma mulher apaixonada pode ter um orgasmo só pelo facto de tocar um dedo da mão do homem que ama. No homem, pelo contrário, todas as sensações estão mais concentradas no pénis " .

Na obra agora editada pela Bertrand, Francesco Alberoni recorre a uma combinação de histórias verídicas e relatos na primeira pessoa, colhidos de entrevistas ou de obras literárias. A partir desta estrutura narrativa o sociólogo analisa as diferentes experiências amorosas subsequentes de cada uma das formas que o amor e o sexo podem tomar. O livro é um sucesso editorial em Itália onde em três meses vendeu mais de 30 mil exemplares.